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Filhos da sorte

por Inês Teotónio Pereira, em 22.07.14

O meu artigo de sábado do i 

 

Esta semana o Observador fez uma reportagem com o título "A coragem de ter muitos filhos". Entrevistou três famílias com mais de quatro filhos, vasculhou nos hábitos, nas rotinas e nas opções dos pais e fotografou as crianças para a posteridade. Estas reportagens são recorrentes e aparecem ao mesmo ritmo que os inquéritos sobre a literatura que os famosos levam para as férias.

Os leitores são curiosos e, como dizia Eça de Queiroz, qual é o interesse do pôr do Sol no Monte Everest em comparação com o drama da família do 3.o esquerdo? Nenhum. Nada de novo, portanto, e a crise da natalidade é um bom mote para este tipo de reportagens. O leitor quer saber o porquê de tantos filhos, quais as dificuldades, quais as motivações que levam a tanta reprodução, como se organiza o dia-a-dia dos pais e dos filhos e ler um ou outro testemunho de felicidade. E o leitor nunca é surpreendido: em nenhuma destas reportagens os pais estão arrependidos do tamanho da prole, não querem doar nenhum dos filhos, e há quase sempre uma motivação divina por detrás da reprodução. A felicidade, essa, irradia através das fotografias. Quem não tem muitos filhos rói as unhas de desalento ao ler estas prosas e estes testemunhos de felicidade, da mesma forma que os menos endinheirados se torcem de inveja quando as revistas revelam a vida dos ricos, o tamanho das mansões em que habitam e a cilindrada dos carros que conduzem. Nestas reportagens, filhos ou carros cumprem a mesma função.

O objectivo destas prosas é apresentar aos leitores exemplos de sucesso e modelos familiares: a mensagem pouco subliminar é mostrar que quanto mais filhos melhor, pois as dificuldades adjacentes superam-se. E não, os testemunhos não são de famílias que vivem num 3.o esquerdo de um bairro social, essas entram no capítulo das reportagens sobre a crise social e cultural. Estas famílias corajosas que dão mote às inúmeras reportagens sobre a crise da natalidade são bonitas, letradas e só passam por bairros sociais.

O Observador, dando como exemplo estas famílias, destacou ainda assim a coragem de ter muitos filhos. Em oposição, temos então os medricas que têm poucos filhos e percebemos com a ajuda deste adjectivo que a questão da natalidade afinal é uma questão de bravura. Exibe-se assim o triunfo dos pais rodeados de crianças como se estas fossem troféus da batalha da vida. Seguindo esta lógica, observamos através do Observador que os bravos somos nós, pais de uma prole imensa, que vivemos num eterno desassossego e no incómodo drama de saber como transportar todos os filhos no mesmo carro, como organizar os banhos no final do dia e como conciliar tudo isto com as reuniões fora de horas e com alguma vida social. Do outro lado está o resto o mundo, composto pelos pais de coragem mediana que da batalha da vida só conseguiram gerar um casal de filhos ou três exemplos de crias motivados pela busca da menina que faltava.

Só que a realidade não é esta. Ter muitos filhos é uma opção. Apenas isso. E quando essa opção pode ser concretizada quer dizer que os pais tiveram sorte e não coragem. Há quem queira ter muitos filhos e não possa por variadíssimas razões e há mesmo quem não queira encher a casa de crianças e não é por isso menos corajoso que um pai de meia dúzia. Quem quer e pode ter muitos filhos não é corajoso, é sortudo. Os exemplos de heróis são outros. São os pais que se levantam às seis da manhã para acudir a dois empregos, que têm filhos com problemas sérios, que transportam as crianças em transportes públicos, que não têm como pagar os ATL nas férias e que conseguem ser felizes apesar das dificuldades que não conseguem superar. O país está cheio de heróis destes, com muitos e poucos filhos; já as reportagens sobre famílias numerosas estão cheias de famílias sortudas. Tudo o resto, a felicidade que emanam umas e outras famílias, é pura especulação

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publicado às 19:10


9 comentários

De Ana a 10.10.2014 às 00:07

Que texto excelente. Na minha opinião tem havido textos muito bons e textos muito divertidos neste blogue, mas este leva o prémio de melhor de todos, dentro dos sérios -e que seriedade! Ainda bem que, sendo quem é (mãe de tantos) e sendo quem é profissionalmente (refiro-me à carreira política, aliás desconheço outra), tem esta visão tão límpida, tão saudavelmente distanciada e tão sensata do que é, de facto, o heroísmo dos nossos dias. E muito, mas muito, ficou ainda por dizer.
Confesso que é por causa de opiniões tão acertadas e tão sólidas como esta que volto,(muito) de vez em quando, a ter fé nos "políticos" portugueses (ou em alguns deles, pelo menos).
Em nome do país, torço para que não perca esse olhar saudável e largo sobre a vida como ela é.

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A Um Metro do Chão o mundo está cheio de pernas e tem de se olhar para cima para ver o céu - o que faz toda a diferença. O preto é mesmo preto e o branco é branco. As coisas são todas assustadoramente concretas e ninguém aceita argumentos, só respostas. Não é um mundo melhor, pior ou mais verdadeiro; é apenas diferente, apesar de ser o mesmo. Este blogue é sobre isso. E sobre uma coisinha ou outra que pode não ter nada a ver.

Autora

Inês Teotónio Pereira
iteotoniopereira@gmail.com
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